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Niceia 325

Ícone bizantino do Primeiro Concílio de Niceia, com os bispos reunidos em semicírculo ao redor do Evangelho, simbolizando a formulação do Credo Niceno
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Escrito por A Redação

Os 1.700 anos do concílio que estabeleceu os contornos do cristianismo.

Marcos De Benedicto

Era o 4º século, tempo de luzes e sombras. O império que um dia perseguira o Cristo crucificado agora se curvava à cruz. Porém, a fé que emergia como força civilizadora se mostrava fragmentada por disputas sobre a própria natureza de Deus.

Foi nesse contexto que o imperador Constantino convocou bispos de todo o império para uma assembleia em Niceia, no ano 325, com a finalidade de responder a uma pergunta decisiva: “Quem é Jesus?” O que estava em jogo não era mera semântica, mas o coração do cristianismo: Cristo é criatura ou Criador?

O concílio não nasceu de um consenso, mas de um conflito. Para muitos, a doutrina ariana de que Jesus não era coeterno com o Pai parecia razoável; para outros, inaceitável. Afinal, se Cristo não era plenamente Deus, poderia realmente salvar?

Para dirimir essa tensão, foi planejado o primeiro concílio ecumênico da história, classificado por LeRoy Edwin Froom como “o acontecimento mais notável do 4º século” (The Prophetic Faith of Our Fathers [Review and Herald, 1950], p. 367). Acima de tudo, o imperador buscava restaurar a unidade da igreja e, por extensão, a estabilidade do império.

A ideia de realizar o concílio pode ser creditada a Ósio de Córdoba, que já havia dirigido um sínodo em Antioquia, no início de 325. Ele convenceu Constantino da seriedade da crise ariana e da importância de realizar um concílio em Ancira. O imperador comprou a ideia, sugeriu a mudança para Niceia e colocou seu peso político na realização do evento, garantindo seu sucesso. Niceia (em grego, Nikaia) era uma cidade rica, situada na extremidade oriental do lago Ascania (atual lago İznik), na região da Bitínia, correspondente à atual Turquia.

Compareceram representantes da cristandade de quase todas as regiões do império, incluindo Egito, Palestina, Síria, Grécia, Trácia, Gália e Britânia, acompanhados de seus assistentes, totalizando entre mil e 2 mil pessoas. Eles permaneceram reunidos durante dois ou três meses, alojados no palácio imperial em Niceia ou nas dependências anexas. O concílio teve início em 20 de maio de 325, com debates centrados nas controvérsias arianas, e as sessões prosseguiram até 25 de julho ou possivelmente até o fim de agosto (as fontes divergem quanto à data de encerramento), tratando de questões administrativas, disciplinares e litúrgicas da igreja.

No fim do concílio, segundo Eusébio de Cesareia (Vida de Constantino 3.15-16), o imperador ofereceu um magnífico banquete aos bispos. Para Mark S. Smith, Constantino desejava transformar a grandiosidade do primeiro concílio ecumênico em propaganda imperial, apresentando a celebração de seus 20 anos de reinado (Vicennalia) como glorioso símbolo da uma dupla vitória: assim como ele assegurara a paz ao império, agora garantiria a paz à igreja (The Idea of Nicaea in the Early Church Councils, AD 431-451 [Oxford University Press, 2018], p. 7). Talvez desejasse também render homenagem ao Deus que lhe concedera a vitória sobre Licínio, em 324, quando sacerdotes e bispos cristãos acompanharam seu exército e elevaram preces por seu sucesso.

Personagens

Entre os 318 participantes tradicionalmente associados ao concílio, cinco tiveram um papel decisivo nos acontecimentos: Alexandre de Alexandria, Ário, Atanásio, Ósio e o imperador Constantino.

Alexandre (c. 250-328), bispo de Alexandria, era um dos principais opositores das ideias arianas. Em 321, ele excomungou Ário, levando a controvérsia ao conhecimento de outras comunidades cristãs e do imperador Constantino. Foi uma das vozes mais relevantes na formulação do credo que afirmou a igualdade divina entre o Pai e o Filho. Mesmo antes de 318, ano em que a crise ariana eclodiu em Alexandria, a cidade já enfrentava tensões teológicas. A influência de Orígenes, o grande teólogo alexandrino e prodigioso autor de centenas de obras de inspiração platônica, ainda se fazia sentir ali.

Ário (c. 250-336), nascido em Cirenaica (Líbia), era presbítero de Alexandria. Pensador moldado pela lógica grega, queria preservar a transcendência absoluta de Deus. Tinha uma visão equivocada do monoteísmo e afirmava que o Filho era uma criatura sublime, mas não eterna como o Pai. A teologia de Ário, conhecida principalmente por citações de seus opositores, refletia a tradição alexandrina e não era considerada radical em seu contexto. Sua cristologia teve ampla adesão, contando com o apoio de bispos como Eusébio de Cesareia e Eusébio de Nicomédia.

Ao que parece, o conservador Ário não foi o fundador de uma seita, mas o catalisador de pensamentos que estavam no ar, segundo Lewis Ayres (Nicaea and Its Legacy [Oxford University Press, 2004], p. 12, nota 3). O chamado “partido ariano” reunia correntes teológicas variadas e muitas vezes contraditórias.

Reabilitado alguns anos depois por influência de Eusébio de Nicomédia, Ário buscou reintegrar-se à igreja de Alexandria, persuadindo o imperador Constantino de sua suposta ortodoxia. Porém, encontrou firme oposição em Atanásio, bispo local. Em 336, enquanto seguia rumo à igreja onde receberia a comunhão, por ordem do imperador, Ário afastou­se por um momento do grupo que o acompanhava, mas não retornou. Foi encontrado morto pela comitiva. Alguns interpretaram sua morte súbita como juízo divino e outros como resultado de envenenamento.

O diácono Atanásio (c. 296-373), que atuou como secretário do bispo Alexandre no concílio, representava a nova geração da inteligência cristã. Tornou-se bispo de Alexandria em 328, sucedendo Alexandre. Durante seus 45 anos de episcopado, enfrentou intensas perseguições e cinco exílios impostos por quatro imperadores. Isso deu origem à frase “Atanásio contra o mundo”.

Apesar das adversidades, fortaleceu as igrejas do Egito e da Líbia, aproximou-se dos monges do deserto e dedicou a vida à defesa da ortodoxia contra o arianismo. Evitando a teologia especulativa, ele buscava a preservação da fé apostólica e patrística. Se o Filho fosse uma criatura, argumentava, então o cristianismo seria apenas uma mitologia refinada.

Embora seja considerado o campeão da ortodoxia, Atanásio não é visto de forma unânime por uma lente positiva. O teólogo anglicano Christopher A. Beeley o acusa de flertar com heresias como nestorianismo, modalismo e docetismo, além de usar uma retórica violenta (The Unity of Christ [Yale University Press, 2012], p. 105-170).

O primeiro nome na lista de assinaturas do documento de Niceia foi o do bispo Ósio ou Hósio de Córdoba (c. 257-359). Pouco antes, ele havia sido o portador de uma carta de Constantino para o bispo Alexandre e Ário ordenando que não perturbassem a igreja. Com seu grande prestígio, Ósio presidiu os trabalhos e debates teológicos, organizou a discussão sobre a divindade de Cristo e supervisionou a redação do Credo Niceno. Sua autoridade era eclesiástica e intelectual, garantindo que as decisões fossem baseadas na fé e na tradição cristã, não apenas na ordem imperial.

Por sua vez, Constantino (272-337) foi quem convocou o concílio com o objetivo de resolver a crise religiosa que ameaçava a unidade de Roma. Ele não era teólogo nem bispo, mas compreendeu com rara intuição o poder unificador da teologia. Sua palavra tinha peso político, social e religioso. Presidindo algumas sessões em estilo senatorial, trajando púrpura e ouro, ele fez discursos e garantiu que as decisões fossem respeitadas, mas aparentemente não interferiu nos debates teológicos específicos. Exerceu uma presidência simbólica.

O fato de Constantino se tornar cristão era uma novidade que despertou muitas perguntas. Como os bispos deveriam se relacionar com o imperador? Como a hierarquia eclesiástica deveria se posicionar diante da estrutura imperial? O concílio foi um autêntico laboratório para o surgimento tanto de uma teologia sobre Deus quanto de uma filosofia política acerca do imperador cristão. Infelizmente, a igreja foi na direção errada.

O nome do papa Silvestre, bispo de Roma, não aparece na lista de participantes porque foi representado por dois presbíteros, Vitus e Vincentius, cujas assinaturas têm destaque nos registros conciliares, sinalizando a autoridade romana já na época.

Foto de uma pintura em igreja (1895) representando o Concílio de Niceia. Crédito: Wikipedia

Decisões

As discussões em Niceia foram acaloradas, e o que estava em jogo não cabia apenas nas sutilezas das palavras gregas. Termos como ousia (“essência”), hypostasis (entendida de modo próximo a “substância”) e prosopon (“pessoa”) tinham ainda sentidos imprecisos e herdados da filosofia antiga, o que frequentemente gerava confusão.

Ário argumentava que o Pai era absoluto e anterior a todas as coisas, enquanto o Filho, embora exaltado, fora criado por um ato de vontade divina – a primeira e maior de todas as criaturas, mas ainda subordinada e com começo no tempo. Apoiado em textos bíblicos como João 14:28 e Colossenses 1:15, defendia que apenas o Pai era eterno. Seus opositores sustentavam que o Filho é gerado eternamente, compartilhando a mesma essência e eternidade do Pai. Rejeitavam o arianismo por comprometer a unidade divina e contrariar passagens como João 1:1 e 10:30.

Em meio a discursos inflamados e longas deliberações, emergiu a voz jovem e firme de Atanásio, que insistia em algo que soava ousado: o Filho não é “semelhante” ao Pai, mas “da mesma substância” (homoousios), termo-chave que se tornaria o estandarte da ortodoxia. Com essa palavra, a igreja afirmou que, em Cristo, Deus mesmo entrou na história, e não apenas um ser intermediário.

Após intensos debates, o concílio declarou que o Filho é “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado”, condenando Ário e seus seguidores ao exílio e ordenando a destruição de seus escritos. O evento tornou-se o marco inaugural dos grandes concílios ecumênicos.

Ícone ortodoxo representando o Primeiro Concílio de Niceia (325 d.C.), com o imperador Constantino ao centro e os bispos reunidos segurando o texto do Credo Niceno. Crédito: Wikipedia

O credo que dali nasceu foi, por assim dizer, a consolidação eclesial da doutrina da “Trindade”, termo empregado primeiramente por Tertuliano (c. 160-220) de modo técnico e teológico (cf. Contra Práxeas 2–4, 8–9, 12). O concílio ajudou a dar forma a essa crença. O principal resultado foi teológico e simbólico: a igreja, pela primeira vez, expressou oficialmente sua fé comum e definiu os limites entre ortodoxia e heresia. Em 381, o Concílio de Constantinopla reafirmou e ampliou a confissão nicena, completando a fórmula trinitária.

Apesar da linguagem filosófica empregada no credo, a “gramática” trinitária tem matriz bíblica. Isso está evidente em passagens como Gênesis 1:26; 3:22; Isaías 6:3, 8; 48:16; 61:1; Mateus 3:16, 17; 28:19; João 14:16, 17, 26; 15:26; 1 Coríntios 12:4-6; 2 Coríntios 13:13; Efésios 4:4-6; 1 Pedro 1:2; Judas 20-21; e Apocalipse 1:4, 5. Somente no Apocalipse, em diferentes formas, há 123 referências a Deus, 80 a Jesus e 17 ao Espírito Santo.

O concílio terminou, mas a paz não veio imediatamente. O próprio Constantino, que buscava unidade política, viu o império dividido por controvérsias teológicas. Muitos bispos que haviam assinado o credo recuaram sob pressão. O arianismo continuou influente, em especial no Oriente e entre os povos germânicos. Durante décadas, o império seria palco de sucessivas alternâncias de poder entre imperadores favoráveis ora aos nicenos, ora aos arianos.

Perspectivas

A igreja passou a chamar o Credo Niceno de “Símbolo da Fé” (symbolum fidei). Os primeiros cristãos adotaram o termo symbolon com um novo sentido teológico, designando o resumo da crença comum que identificava os fiéis e distinguia a ortodoxia da heresia. Recitar o symbolon era reconhecer-se como parte do corpo de Cristo e da comunhão apostólica. Assim, o Símbolo Niceno tornou-se a fórmula de fé normativa.

Do ponto de vista católico, o Concílio de Niceia é considerado o primeiro grande marco da tradição viva da igreja. Ele representa a ação do Espírito Santo guiando o magistério para preservar a fé apostólica diante do erro. O catolicismo reconhece em Niceia não apenas um debate histórico, mas um momento de revelação eclesial.

Já entre os protestantes, o Concílio de Niceia é valorizado principalmente como um testemunho da fé bíblica compartilhada antes das divisões confessionais. Reformadores como Lutero e Calvino aceitaram o Credo Niceno como uma expressão legítima da ortodoxia cristã, ainda que sem atribuir autoridade infalível à instituição conciliar. Para eles, o valor de Niceia está em sua fidelidade às Escrituras, não em seu status eclesiástico.

A Igreja Adventista não adota formalmente o Credo Niceno, mas concorda com seu núcleo essencial: a plena divindade de Cristo e Sua unidade eterna com o Pai. Reconhece o valor histórico de Niceia (325) e Constantinopla (381) na defesa da fé bíblica contra o arianismo, embora prefira formular suas doutrinas diretamente a partir das Escrituras, em linguagem clara, prática e não filosófica. Evita a rigidez dogmática e a autoridade conciliar que marcaram o cristianismo imperial, tampouco adota o uso litúrgico do credo.

A fé adventista é trinitária e cristocêntrica, confessando, em harmonia com o espírito de Niceia, que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, o eterno Salvador e Criador. No entanto, vê Jesus como eternamente autoexistente e fonte de vida. “Em Cristo, há vida original, não emprestada, não derivada”, afirmou Ellen White (O Desejado de Todas as Nações [CPB, 2021], p. 423). Portanto, na teologia adventista, a ideia de geração eterna não tem lugar.

Apesar de reconhecerem convergências entre a visão adventista da Trindade e o trinitarianismo formulado no Credo Niceno, os teólogos adventistas tendem a enfatizar as diferenças. Segundo a análise de Jean e Iracéli Zukowski, o credo dá primazia ao Pai e defende a geração eterna do Filho (“How do the forms of the Nicene Creed(s) differ from the biblical view of the Trinity?”, em Exploring the Trinity [Biblical Research Institute, 2025], edição Kindle, cap. 37).

Para Fernando Canale, a visão católica e protestante de Deus é fortemente influenciada pelo neoplatonismo, com sua ideia de um Deus atemporal, absolutamente imutável e marcado pela simplicidade. Isso superenfatiza a unicidade e minimiza a triunidade divina. Já o adventismo vê Deus como inserido no tempo e no espaço, cada pessoa divina com um centro de consciência (“How does classical theism in its Roman Catholic and Protestant forms differ from the Adventist biblical understanding of the Trinity?”, em Exploring the Trinity, cap. 38).

Agenilton Corrêa nota certas semelhanças entre as concepções católica e adventista da Trindade, mas ressalta com mais ênfase as diferenças. Segundo ele, as duas perspectivas revelam-se incompatíveis. As afinidades não tornam as igrejas iguais; as divergências, ao contrário, evidenciam o quanto são distintas. Em especial, os tópicos da eterna geração do Filho e da processão do Espírito Santo constituem pontos de tensão decisivos (“The Trinity in Roman Catholicism and in Adventism”, em Revisiting the Trinity [Biblical Research Institute, 2025], edição Kindle, cap. 6).

Boa parte dessas diferenças se deve à questão da fonte autoritativa. Conforme assinalam Coleman Ford e Shawn Wilhite em Nicaea for Today (B&H Academic, 2025, edição Kindle, posição 451), podemos pensar em três modelos de autoridade da tradição:

Tradição 0: a Escritura é a única fonte de autoridade para a igreja, sem qualquer recurso à tradição.

Tradição 1: a Escritura é a única fonte de autoridade para a igreja, mas com o auxílio da tradição.

Tradição 2: a Escritura e a tradição possuem autoridade igual na vida da igreja.

Enquanto o Concílio de Niceia pode ser enquadrado na Tradição 1, o adventismo prefere a Tradição 0, ou seja, Escritura total. Para Ellen White, “os credos ou decisões dos concílios eclesiásticos, tão numerosos e discordantes como são as igrejas que representam”, não devem ser considerados “como evidência a favor ou contra qualquer ponto de fé religiosa” (O Grande Conflito [CPB, 2021], p. 495).

Enfim, os nicenos procuraram unir a revelação bíblica à reflexão filosófica do seu tempo, mas poderiam ter sido mais criteriosos na delimitação dos conceitos e mais fiéis à linguagem das Escrituras. Ainda assim, parte de sua fórmula trinitária reflete com clareza o padrão escriturístico: “Creio em um só Deus, o Pai […]; em um só Senhor, Jesus Cristo […]; e no Espírito Santo” (cf. Ef 4:4-6). A ideia central de um único Deus em três pessoas encontra-se nas próprias páginas sagradas.

Legado

O concílio de 325 foi o momento em que o cristianismo tomou consciência de si como sistema de pensamento e de adoração, capaz de resistir às divisões e ao caos conceitual do seu tempo. Foi o batismo intelectual da fé cristã, ocasião em que teologia e poder temporal se encontraram, não sem tensão, para fundar uma nova síntese que marcaria os rumos da cristandade.

Apesar de algumas deficiências, Niceia foi um esforço para refinar a linguagem da fé e expressar, com reverência e precisão, quem é o Deus que Se revelou em Jesus Cristo. Essa tarefa está longe de ser simples, pois, como observa Khaled Anatolios, “o Deus infinito não pode ser contido pelo finito saber humano” (Retrieving Nicaea [Baker Academic, 2011], p. 282). Mas podemos estar certos de que “a fé trinitária decorre do reconhecimento de que a forma trinitária da relação de Deus conosco reflete verdadeiramente o ser divino e é determinada pelo próprio ser trinitário de Deus” (p. 291).

MARCOS DE BENEDICTO, pastor e doutor em Ministério, é editor emérito da CPB

(Artigo publicado na Revista Adventista de dezembro/2025)

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